terça-feira, 24 de abril de 2012

DELICADEZA
Sussurro da brisa na folha do outono Arrepio na água, pele sem contorno Fiapo de espuma na ponta do dedo Perfume de lavanda nos lençóis do encontro Aceno lento num adeus longo Balançar do galho pela flor Silêncio de piano ao longe Nota final da melodia Fina iguaria Carinho de unha em teu braço Camisola de cetim na espera O lilás no horizonte Chuva fina de manhã Calor das cobertas no corpo nu Toque no bico do seio Chá de jasmim na porcelana Tinir de cristal no vinho do cálice Teu convite expresso apenas nos olhos Imagem que ficou O aceite para depois de amanhã Vana Comissoli

sábado, 22 de outubro de 2011

AO MESTRE, COM CARINHO


“ Um conto é um corte na vida. O que houve antes, ou virá depois não importa. A vida seguirá, mas aquele segmento será a polarização imutável trazida pelo antes e deslizando para o depois. Estímulo e retorno. Apenas isso e isso é muito.
            O conto é como a fotografia: um instante capturado. Um reflexo do ímpeto.
            A novela como a pintura: leva tempo para se terminar o quadro, mas sempre será duas dimensões.
            O romance como a escultura: olhamos de todos os ângulos e temos a figura completa. A quarta dimensão, pois ao físico e palpável é acrescentada a alma.”
            Eu bebia as palavras de Jorge Medina há muito tempo, ou toda a vida. Eu caminhara pelo deserto da busca cega e quase já desesperançava quando o conheci. Até então escrever era um passatempo, um alívio das tensões. A forma como as palavras se agitariam ou se descansariam no papel não tinha significado algum até encontrá-lo.
            “Para que este corte, esta foto, tenha significado é necessário um conflito, sem conflito não há conto. Podemos criar uma rosca de açúcar ou um espinheiro agudo. A densidade terá o tom que escolhermos. Um conflito denso agregará mais valores e mais emoção.”
            Eu desenhava mulheres nuas em meu caderno de notas e via que os olhos de Jorge volta e meia espiavam. Percebia uma nesga de sorriso? Não sei, mas quando eu lia meus contos temáticos sim, ele ria. Baixava a cabeça. Fechava os olhos, era um auditivo, e ria. Às vezes abertamente e isso me deliciava.
            Era inevitável desenhar furiosamente, eu era auditiva ativa, meus olhos precisavam estar distraídos, ou melhor, minhas irrequietas mãos, para que eu capta-se aquela fala mansa carregada de preciosidades que transformariam minha vida.
           
“Maria entrou no quarto cheia de culpa. Eu também era culpado.
            (O ruído rápido e quase ininterrupto do teclado, era música aos ouvidos de Jorge Medina e as idéias quebravam as paredes do quarto pondo-o em vôo livre.)
            Nem por um momento deixei de ver meu irmão entrando na igreja, os olhos prendendo as lágrimas. Era o dia de desposar Maria e mostrar seu troféu até que a morte os separasse. Aceitei ser padrinho e lá estava com a gravata me enforcando, minha cabeça girando em cima dos ombros, prestes a cair. O perfume da noiva me alcançava como se ela ainda estivesse em meus braços. Maria, deliciosa, suave, rosada, agitada, urgente na chorosa e lamurienta despedida da véspera.
            (Jorge bateu o cigarro e abanou a fumaça quase palpável. Ficaria bom, este conto ficaria bom, pensou com o velho sentimento de dominar o mundo, as pessoas, através das palavras.)

            Na primeira aula mandou que nos apresentasse como se fôssemos nosso colega da frente. Algum tempo depois entendi que estava reconhecendo nosso feeling. Para compor um personagem precisamos aprender a captar as pessoas à nossa volta, isso não significa inventar o que nos der na cabeça. É preciso manter a coerência mesmo que incoerente do personagem, seu perfil, seus pensamentos íntimos que não serão descritos, mas percebidos através de seus atos.
            Adequar a linguagem aos acontecimentos.
            Ação? Escreva numa linguagem rápida, quase sem tempo do leitor respirar, mas não o sufoque.
            Dor? Use palavras trágicas, que chorem nas letras. Observe o som das vogais, seu crescente, também falam, ou desmaiam no decrescente.
            Saudade? Estique as palavras, deixe que elas relembrem os momentos que se foram.
             Ler onde não está escrito. O segredo do conto: o subliminar, magistralmente atingido por Machado de Assis, na Missa do Galo. Perseguido quase sangrentamente por todos os outros, estrela de difícil encontro.

            “Maria encontrara meu irmão Osório como uma luz, uma salvação, natural que se encantasse e visse nele possibilidades de amor. Acho mesmo que o amava sinceramente. Afinal o amor é correspondência e preenchimento de necessidades, apesar de deliciarmo-nos enfeitando-o com a aura que sobrou do romantismo.
           O que ela não contava era com a paixão, a louca, súbita e irreverente paixão. Como gostamos de nos apaixonar! Vemos apenas a paixão. Enganamo-nos dizendo que é um rosto, um olhar... Não é nada disso, é uma emoção sedutora tique taqueando dentro de nós, acelerando o sangue, tirando o sono, tornando-nos escravos de um tilintar de voz.
Maria respirava paixão e tentava se livrar desta droga casando-se com Osório por amor plácido e rotineiro. Nada de frenesi. Dia de primavera sem o calor cáustico e excitante do verão.
 Não podemos impedir o céu de chover, a noite de chegar, a planta de florescer, mesmo que isso, momentaneamente faça o sol adormecer, o dia descansar, a planta fenecer. Maria descobriria em meus braços.
            Eu voltara para o casamento de meu meio irmão tão diferente de mim: calmo, de passos certos, colocando tijolo a tijolo as paredes de sua vida. Eu fora agraciado com um mestrado em Lisboa e, mesmo sem deixar de lado a importância de meu objetivo, resolvi que era uma oportunidade imperdível para virar do avesso a velha Europa. Livre de pai, mãe, casa, meias lavadas...
            Entrei fundo nas tascas portuguesas onde aprendi a gostar de cerveja importada, terminar de quebrar minhas grades e rir com sonoridade retumbante. Retumbante era o que guardava de minha terra deitada em leito que eu renegava.
                        Sentávamo-nos descabelados e aéreos nos bares de Lisboa a debochar da cidade florida. Jovens insustentos a falar do que imaginávamos saber. A mesada, sempre escassa, chegando de todos os cantos do mundo para que pudéssemos divagar nas nuvens de nossos baseados, encontrando profundidade nas vidas de nossos escritores favoritos.
             Citávamos Pessoa como se ele estivesse a sustentar Mário de Sá Carneiro na mesa ao lado e a sentíamos paixão pelos corpos que Miguel Esteves Cardoso possuiu.
            Lá assim era e eu aprendera a ser inconsequente, estrangeiro tudo pode.
            Tanta diferença entre eu e Osório devia-se ao fato termos de mães diferentes. A minha era uma jovem senhora de bem com a vida e a dele, uma chata, presa no ante ontem. Nesta escolha a minha ganhou meu pai que se tornou um cara menos sisudo e mais disposto a tomar um pilequinho nos churrascos familiares. Quem saiu perdendo ou ganhando? Não tenho a menor idéia, o fato é que éramos diferentes, cada um ganhou e perdeu um pouco. Infelizmente os dois ganharam Maria.”
            - Não posso me esquecer da verossimilhança amanhã, na aula, devo reforçar este aspecto importante dos personagens. Se os alunos listarem todas as características, começando pelas físicas e terminando nas psíquicas, entenderão melhor.
            A economia de palavras. Quantas já apaguei! Economia, limpeza: chô quês sujos e repetitivos, chô pronomes desnecessários, chô linguagem poética numa prosa. A menos que se deseje falar de flor, passarinho e borboleta. Eu quero isso? Preciso ter certeza dessa resposta.

            - As qualidades físicas devem retratar as psíquicas.
            Anotei a informação e criei mil personagens diferentes a partir daí. Antes de dormir os nomeava, via seus movimentos nos sonhos e meus cadernos se encheram de desenhos com fisionomias feitas a facão, mas expressando sentimentos cortantes.
            Estou louca ou Jorge Medina me olha mais do que aos outros?
            - Vamos imaginar dois personagens. Nossos personagens. Paulo e Márcia. Listem ações que se desenrolarão para um e para outro. Listem os verbos determinantes dessas ações, as dele e as dela, vejam a convergência. Não permitam que idéias se atravessem, mantenham o foco!
          Como gostaria de ser estenógrafa! Não perder nem a respiração entre as palavras. Se eu seguisse à risca seria uma boa escritora? Nem me atrevia a pensar em romance.
            - O conto é o gênero mais complexo de todos, não há espaço para vacilo, minúcias, palavras que não sejam absolutamente necessárias.
            Mudei de idéia sobre tudo.

            “Não foi intencional. Ela saía do banho e eu entrava. Meio nua? Não vi nada, só os olhos flamejantes que me examinaram. Ainda não tínhamos nos encontrado, embora minha vinda estivesse anunciada. Estava nos preparativos da cerimônia quando joguei as malas no quarto de hóspedes, furioso. Tinham dado o meu, o meu, para aquelazinha que aportara de pára-quedas na minha casa.
            Dois pontos, luz azul, arco voltaico: Maria e eu.
            Depois aquela coisa besta de apresentação, jantar incômodo das pernas se tocando por acidente e os olhos irrequietos e prometedores. Eu a despia junto com a pele dos tomates, a comia no filé à parmegiana  e lambia na sobremesa de sorvete.
            Foi simples e sem culpa. Uma noite, que mal faria? Depois... Impossível para sempre. Não era o recado que meu corpo passava durante a marcha nupcial féretra.”

            No dia seguinte a aula foi sobre neologismos. A capacidade de criar palavras, a sagacidade de colocá-las no texto e a profunda coragem de fazê-lo.
            “O mestre neste campo minado foi João Guimarães Rosa. Levou suas obras ao instigante mundo, onde recria a língua e faz com que os leitores tentem decifrar a todo momento os seus “achados” semântico, morfológico, e, até mesmo, sintático ou morfossintático, como se a literatura não fosse apenas algo sério, mas também algo criativo, artístico e misterioso.
            E a literatura não é mesmo algo sério, é brincadeira do intelecto, liberdade de sentir, recriar a vida numa performance que nos deixe de queixo caído.”
            Féretra mereceu a aula.

            “Entrei na cozinha cantarolando, sou da paz de manhã, gosto do sol, ele esteja no céu ou não. Sabia que a lua-de-mel tinha sido adiada pelas cinzas do vulcão chileno que teimava em colocar uma sensação de fim-de-mundo. Apocalipse day.
            Teria que parecer como sempre e fazer de conta que não tivera ouvidos de cão para captar ruídos que desejava meus e de Maria. O desgraçado quarto de hóspedes era no sótão e eu não ouvia nada naquela casa antiga de paredes camufladora dos segredos de alcova.  
            Fiquei mudo. Pavor.
            Estavam os quatro na cozinha. Meus pais com as pistolas tremendo nas mãos, apontando-me. A de minha mãe, com belo cabo de madrepérola, teimando em mirar o chão. Meu pai segurando com as duas mãos para esconder o tremor e Osório direto nos meio de meus olhos. O tiro seria imbatível.
            Maria chorava balançando o corpo e a cara marcada por hematomas se ergueu ao meu bom dia fingido.”

            Jorge escrevia tramas tempestuosas e paixões escaldantes. Era a densidade, dizia ele, enquanto eu o copiava e punha ainda mais ardência. Excitaria sua curiosidade ao ponto de ebulição que a minha estava? Seus livros eram ambrosia que me açucarava.
            Paixão, aquela mesma que Orlando sentira por Maria. Eu não queria amor algum! Queria Jorge e suas palavras mágicas. Queria pulsar como os personagens. Eu: Ana Karenina, Lady Godiva, Madame Bovari. É querer muito? É só literatura, me convencia.
            Jorge escrevendo, Jorge falando, Jorge lendo, Jorge beijando, Jorge me chamando, Jorge, Orlando... Orlando, Jorge...

            “Maria, a Louca. Pela Graça de Deus, Rainha de Portugal e dos Algarves, d'Aquém e d'Além-Mar em África, Senhora da Guiné e da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia, etc.
Pela Graça de Deus, Rainha do Reino Unido de Portugal, Brasil e dos Algarves, d'Aquém e d'Além-Mar em África, Senhora da Guiné e da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia, etc.
            Nada disso! Pela graça de uma trepada sensacional, a maluca resolveu não fazer amor com o marido na noite de núpcias e, ainda por cima, apontou com todas as letras o infrator.”

            Os temas, as formas, a linguagem... Aula a aula compondo a trama do que viria a ser eu.
“Sobre o tapete, ou duro piso, a gente
compõe de corpo a corpo a úmida trama.”
            Drummond saberia que isto também é amor? Que pode haver paixão entre o escritor e a escrita? Que posso ter mil Jorges, ser bígama, fiel, santa e puta?
            Hoje, na frente do teclado onde as palavras aparentemente surgem sem uma nesga sequer de meu mestre, eu o relembro e devo a ele mais um livro editado e a entrevista que me espera para falar sobre o conto. O conto que foi o fruto deste amor incondicional.

            Final aberto? Final fechado?
            Qual se adéqua mais ao tema proposto?
            Vamos deixar assim, ainda não parei de escrever...
                                                          
                                                                                                                            Vana Comissoli

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

DESAFIO DA SEMANA

O tema da semana é: 7 de setembro.
Fácil, né? O difícil é inovar no tema.
Começou a corrida. Até dia 15/09.
Boa sorte

ARMADILHA

A discussão estava acirrada. As palavras se batiam e contorciam no ar como bolas de aço: um estrondo. Só não havia tapas na cara por consciente respeito às idéias alheias, mas a vontade era de ser um pouco mais autêntico e estraçalhar alguns sorrisos mofados.
            Gabriela, sarcástica e ferina, bombardeava a paixão, o encontro sem sentido de corpos. O sexo pelo sexo. Coisa de animal, dizia com convicção. Defendia suas filosofias com unhas e dentes, se baseavam em longas leituras e mais longas meditações. Arranhava quando a contradiziam.
            - Paixão causa dor, enlouquecemos, perdemos os parâmetros, não enxergamos a pessoa que a catalisa, na verdade ela se torna um meio e não um fim. Não é importante, embora nos pareça a pessoa mais importante do mundo, única e insubstituível. Por breve tempo, o tempo necessário de provarmos que a conquistamos, um souvenir na viagem dos sentidos.
            Relacionar-se é muito mais profundo do que o breve mergulho na sensação. Sou racional, madura, posicionada. Não me apaixono, escolho. Recuso-me a ser um pedaço de carne pendurado no açougue.
            Cícero colocou sobre a mesa, como sobremesa esperada, seu sorriso de escárnio. Há muito que desejava essa mulher, talvez por se tão teimosa e se valer, era excitante e o deixava ouriçado.
            Ela empurrou o sorriso até que se estatelasse no chão.
            - Não seja ridículo! Nem tenta dizer que sou sapatão. Se fosse não teria pejo algum em mostrar, mas que não me deito com qualquer enxovalhado que apareça, não me deito. Me respeito e não estou nem aí para o que possas pensar. Tu não passas de um saco de porra.
            Talvez ela tivesse razão. Lembrou rápida e vagamente das tantas mulheres que tivera, tão efêmeras quando um aguaceiro de verão. Uma ou outra permaneceram em sua vida até se mostrarem diferentes do menu apresentado: nada de filé mignon, feijão com arroz insosso. Teria começado de forma errada? Se tivesse dado tempo será que...
            Não houve tempo, talvez um breve latejar. Logo as vozes se perderam para o lado. Os dois fingiam discordar dizendo as mesmas coisas. A língua portuguesa possui desvãos que permitem se dizer a mesma coisa de ene maneiras. A verdade rondando sub-reptícia, pincelando de verde o que é amarelo e azul.
            Ele estava encolhido, logo saberia que era uma boa estratégia embora tivesse começado espontaneamente, se sentira pequeno e retirava seu time de campo com delicadeza para não passar vergonha. Não via hora de se livrar dela que metralhava seu sexo físico e espiritual. Era uma intelectual chata e prepotente, carimbara assim dentro dele e quem quer saber de mulher metida a ter idéias? Se quer é uma boa mulher de cama. Parece que Gabriela tinha alguma razão. Ou todas?
            - ... claro achas que estás diante de uma mulher frígida que cheira a absorvente higiênico, limpa e branca como uma propaganda deles. Morro de rir! O que és? Uma criança? Um éfebo?
            Ele não coçaria a cabeça com ar de dúvida de forma alguma. Saco! Não podia falar mais fácil? Agora teria que fazer de conta o entendimento que não veio. Disfarçou, chamou o garçom, pediu outro chope, melhor sair cambaleando do que entregar os pontos. Era uma bruxa, a bandida.
            -É antropológico. – arriscou na esperança de falar bonito.
            Ela concordou e acrescentou que sim, era uma questão cultural, podia ser mudado se as mulheres não se preocupassem tanto com o batom e mais com a cabeça. Cabelos são bonitos e sedutores, mas cansam se não têm nada sob ele.
            Cícero imaginou que se ela fosse nadadora, seria uma campeã, tinha um fôlego dos demônios. Não sabia por que ficava ali sentado, grudado nas palavras e quase não ouvindo nada. O perfume talvez? Qual seria? Um aroma exótico, vermelho. Uma sensualidade que o atava e fazia a vontade escorregar. Um jogo que o prendia sem esperar o final desejado ou já sabendo de antemão qual seria?
            Ela jogou a carta sobre a mesa, sem aviso, quase bateu na cara dele. Segurou forte, tinha acabado de afirmar que mulheres cultas não têm tempo para sexo infantil, pensam demais e estão acima de tudo. A risada dela foi um ás de ouros:
            - Cuidado, podes te enganar...
            Foi a deixa para o assunto virar de ponta cabeça, rodopiar sobre si mesmo e se deitar nos olhares e nas pernas que se tocaram. Cícero sentiu os pelos dos braços levantarem como leões e bater em seu sexo igual sino de igreja avisando incêndio. Calma, sugeriu a si mesmo e arrastou a cadeira mudando as posições dos amigos, obrigando todos a um “chega prá lá”
            Os olhos de Gabriela se divertiam, tinha fisgado um bobo e gostava desse brinquedo. Todo caçador um dia caça é.
            Ele foi sinuoso, cobra mandada. Então quer dizer que também pensas em sexo? E como é? Precisa pedir com licença? Chegar de fraque?
            Ela o puxou pela gola da camisa e passou a mão em seu peito, sussurrou ao ouvido: Gosto assim. Sentiu os mamilos enijecidos.
            - Vou te beijar aqui, na frente de todo mundo. Um beijo longo e molhado, farei com que caias no chão.
             Risada escarlate, já tinha lido isso em algum lugar, frase mais idiota, mas riu assim mesmo, já esquecida de Cortázar, Saramago e todos seus outros amantes que não podiam lhe passar a mão áspera. O riso terminou dentro da boca de Cícero. Quanto tempo? O suficiente para os amigos baterem palmas e cansarem de bater.
            Algum disfarce ainda foi tentado, bolhas de sabão estourando no ar. Estavam presos aos olhos um do outro, às mãos, agora impacientes, e ao centro do corpo que latejava esquecendo o vernáculo, as palavras são tão simples no sexo! Ai! Vai! Fui! Hã! Precisa mais? Palavras mais sábias, descritivas e empolgantes não há.
            Ele reafirmou sua masculinidade trazendo a mão de Gabriela sobre seu membro rijo, exigente. Esqueceu as diferenças, se impôs macho que era. A erudição liquefeita no espasmo do prazer cavalgando as torções dos corpos que procuravam abrigo.
            Ele levantou puxando-a para um canto retirado. Todo mundo fez de conta que não entendeu, nem viu nada. O garçom ficou feliz com a gorjeta gorda e virou escudo.
            Cícero viajava uma aventura em camelo, inusitada e desértica de experiência.
             Cenas de sexo... Serão mesmo sempre as mesmas? Ou tem cheiro de novidade a cada vez? Perdi a racionalidade... Últimos pensamentos de Gabriela.
            Agarrou-se ao homem, louca de fome e sede e ele não se negou a ser vinho e pão.
            Vira e ela sentiu o corpo vibrando, o impossível acontecendo num chão de bar, na sem vergonhice da paz do sexo.
            Dedos que destrincham caminhos, se tornam únicos e para sempre a primeira vez.
            O bar falava alto para encobrir o que não deve ser partilhado em palco, mas vivido no escuso da coxia. O entusiasmo quebrando as barreiras e a liberdade abrindo suas divinas asas num pedido de entra, vai, vem, deixa, aqui, gosto, gozo, ai, juntos, mais. Descanso.
            Uma conversa ao pé do ouvido lambido, penetração auditiva e o corpo dizendo que estava pronto, vamos, vem comigo, de que jeito? Na boca, nos seios, o sêmen, creme hidratante. O domínio. De quem sobre quem? Entrega, doação, margem, rio sem fundo, poço, mergulhos, retorno, onda, espasmo. Navegamos.
            Afinal estão prontos. Gabriela puxa as palavras, as filosofias, se veste com elas e beija a boca que a pouco a desnudou de tudo. Ele se certifica que mulheres inteligentes têm vida no meio das pernas.
            Encontro, pensa Cícero.
            Armadilha, ela sussurra.
           

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

PRISIONEIRO

        


Nem abriu os olhos, entrou igual cego com seu cão guia. O olhar ficara em casa junto com a fala, escondidos embaixo da cama, apenas o focinho de fora, loucos de frio. Quando as palavras não são ouvidas ficam geladas e esquecem o caminho da garganta, as cordas vocais deixam de trinar. O olhar mendigo, exposto bifurcado ou enviesado se esquece de voltar.
            Sem entradas lógicas a mente passeia por onde quer, chega no coração onde toca o violino retesado, sem afinação, as paradas cardíacas estacam o bongô da percussão porque susteve o respirar, de susto que levou. As pontes de safena explodem e não se pode chegar ao outro lado do rio, se olha a margem com saudade ou melancolia, não é possível tocá-la.
            Era como um restolho de guerra, depois de muitos anos o guerreiro cansa, por isso a fala e o olhar deixaram de fazer falta, de toda a maneira as estradas estariam minadas e não poderia caminhar por elas, talvez encontrar uma casa com fumaça saindo pela chaminé e uma sopa quente fumegando no tripé sobre o fogo da lareira.
            Quando o capturaram não fez resistência de nenhuma espécie, até por que não tinha, raspara o tacho. Tentaram fazê-lo confessar as loucuras que tinha praticado, as farpas ferozes que teria dirigido aos seus protetores, ilações, ablações. Nada, nenhuma explicação. Qualquer tentativa que fizesse nesse sentido magoaria e enfiariam sua cabeça no balde cheio de comprimidos, sufocaria e alguns acabariam descendo goela abaixo carregando um sono de mea culpa. Para que? Não faria sentido qualquer coisa que dissesse, no fundo nem ele sabia a razão dos acontecimentos.
            Todos os dias a tortura se renovava em gestos nobres, palavras de fartas curvas, às vezes até sorria. É prazeroso escovar os dentes quando se acorda e se sentia limpo por isso.
            Obstinação, dizia o mais calmo. Teimosia, ralhava o irritado. Surto irreversível, vaticinava quem precisava desviar a atenção.
            Os dias escorriam nas páginas dos livros, afinal encontrara tempo para ler, como ansiara por isso. Traziam comida, resolviam a troca da roupa de cama, seu único trabalho era engolir e negar-se. Negar-se era pórtico, lápide. Visualizava: Negou-se a viver até o fim. Foi um herói. Seria reconhecido na posteridade, assim como nos filhos com seu sangue maldito que talvez tenha tido. Vê apenas rostos que parecia ter conhecido, preferiu esquecer e ficaram lá borrados e sorridentes.
            Algum dia teriam que soltá-lo, já estaria assassinado, fingiria que não, que estava vivo e presente mais do que nunca.
            As palavras se criavam como eram, gordas, entupidas de bem querer sufocado. Amar era absolutamente proibido. Talvez pulassem como bichinhos de pelúcia, ou irritadas e cinzentas. Ria fingindo que era de piada ao se dar conta que coisas tão diversas têm a mesma manifestação. De qualquer modo aconteciam na noite fechada da boca no travesseiro. Era perigoso libertá-las, deixá-las vagando de dia, voltariam os carcereiros a levá-las a ferro.
            O olhar continuava vago e oco, diziam que era filosófico, gênio pensativo sobre os porquês e
vasculhando o pensamento tão velho que perdera a graça: Ser ou não ser, eis a questão. Desperdício de tempo, não tinha mesmo resposta, desgaste de neurônios já esculhambados.
            Pensavam que estava vivo, os sinais vitais estavam todos na tela, o fato do coração bater arrítmico era pequena disfunção solucionável.
            Também passeava no jardim antes das 10 da manhã, era a boa hora. Esperavam que fizesse isso e sentasse no banco carunchado para ler o jornal com as notícias todas desatualizadas para ele. Também comia pipocas, as doces que gostava mais, sempre lhe sorriam então, como se fosse engraçadinho. Não era nem um pouco, era só lambuzo que se permitia, mesmo que alguma coisa pingasse na gravata que não tirava nunca.
            Se tinha certeza de não ser observado, brincava de árvore e deixava os pássaros pousarem sem alarde. Soltava pipas, normalmente de cor azul, papel de seda, ainda, só para se confundirem com o céu e ninguém se chocar.
            Tiraram-lhe o café, o deixava excitado, era a informação. Com o que? Gostaria de saber e ria à socapa da gente estúpida que inventava todas as regras para ele seguir. Não davam folga nem quando ouvia música, depressivas não, faz mal e ele adorava soul. Continuavam insistindo que contasse suas coisas secretas, as demoníacas. Curvava-se sobre si mesmo como se assim pudesse segurar qualquer ai fugidio. Quase reagiu quando tiraram o sal. Assim não dá! Essa tortura não aguento! Conseguiu resistir e se fortificou.
            Compraram chinelos, os seus estavam cambaios e esgarçados, era tão bom os pés espiarem dentro deles, agora nem isso. Os novos eram bonitos e macios, não lhe caiam bem. Ficava como uma borboleta presa pelo alfinete. Beleza que só se vê, mas não voa.
            Dia após dia, a mesma história, levanta, vê se dá bom dia, come, está quentinho, olha, vai derramar, cuidado, a escada, é da escada que estou falando, dorme que faz bem, olha pela janela, dia tão bonito, preciso matar a mosca não posso deixá-la circulando sobre ti, hora do banho, vem um pijama limpinho. Que foi? Não gostasse? Como não gostasse?
            Já completava 2 anos a tortura. Estava bem na hora de terminar. Não tinha mais granadas, esgotar todas na última batalha, não sobrou nem uma bala na garrucha, até a faca perdera o fio, só restava esta resistência à la Gandhi. Boba, por sinal, deixaram de dar bola, isso é assim mesmo. Irritou-se completamente. Pela última vez tirou os papéis da gaveta e olhou sua assinatura nos documentos de aposentadoria, sua sentença mortal. Abriu a janela, ainda bem que ventava muito e deixou as asas brancas voarem atém se depositarem no jardim emporcalhando tudo.
            Será que não teria mesmo nenhuma fibra? Estava de enjoado da “cadeira do papai” afinal era bisavô já. Enjoado de comida insossa e do coração que teimava em dar uns pulos deixando a todos enlouquecidos de medo. Será? Até sua próstata tinham roubado. Arre!
            Era cedo ainda, a empregada se movimentava de mentira na cozinha, certa que ele cochilava novelas na TV. Fez uma bela fogueira dentro da bacia de porcelana e jogou os chinelos. Pegou aquela barbaridade de caixas de remédio, e completou o serviço. Deu um cheiro de horror, mas a empregada cantava Bruno e Marrone, só sentia cheiro do namorado.
            Abriu o armário, queria estar pronto para que ninguém viesse comentar que ia embora mal vestido e emporcalhado, isso é coisa de velho. Tinham deixado o terno de riscas limpo e arrumado no último cabide, os sapatos bem lustrados sob ele. Será que nem isso? Quantas vezes dissera que não queria ser enterrado de sapatos? Coisa mais feia os ossos ensapatados depois de um tempo!Colocou o conjunto em cima da cama, não esquecera a camisa cor-de-rosa que escondera, se não fosse isso teriam jogado fora. Tão fora de moda!
            Tomou um longo banho, talvez a água tirasse esse cheiro de antiguidade que gruda mais que goma arábica. Isso não existe mais, vô, é cola Polar agora. Riu bem alto e se esfregou. Depois esticou os cabelos com uma meleca qualquer que encontrou no armário do banheiro. Bem que podia passar uma graxa de sapatos, mas até que todo branco estava bem, combinava com as rugas em torno dos olhos. Fez de conta que eram todas rugas de tanto rir. A loção deu um aroma de limão siciliano de que gostava muito.
            Saiu pé ante pé, só o gato foi com ele até a porta. Gato é assim mesmo, se a gente não se importa com eles logo se esquecem e vão rabear em outro vivente, coisa que não era mais.
            Fechou daquele jeito que aprendera escapando do controle da mãe, roda a maçaneta e só larga quando está pronta para se encaixar em trava. Riu de novo, não tinha esquecido, percebia agora e estava se divertindo como há muito tempo não sabia mais.
            Foi um Deus nos acuda quando o telefone tocou e uma voz faniquitosa avisou que “seu” Jaime tinha tido um ataque cardíaco no rendezvous da Rita Bolotuda, maior vexame.
            Esticado, de sapatos e camisa cor-de-rosa as mãos pousadas em cruz no peito parecia o esperado, só o neto ficou muito intrigado por que aquele sorriso nunca tinha visto no bisa. Estava bonito e no fundo do sem saber desejou estar assim um dia.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

MACHO MACHO MAN


Gostamos de execrar os grandes, seja indivíduo ou estado. Não é assim que os doloridos de cotovelos fazem? Ah, gentinha descornada que está sempre a olhar o rabo do pavão alheio enquanto banca de peru gorgolejando glu-glus repetitivos e risíveis.             É assim... Desviar a atenção ou acautelar-se antes que as metralhadoras se voltem para peitos com quilômetros de ficha corrida ainda sob o tapete lavado a Pinho Sol diário.
            Políticos americanos atléticos e bonitões foram “pinçados” enviando fotos para senhorinhas disponíveis e loucas para acreditar que o gatão era livre, leve e solto além de ilustre desconhecido e não manjado pelos repórteres de plantão. Os hakers bisbilhotaram e acharam pratos quentes na bandeja, puseram a boca no mouse, digo, as fotos na Internet, a mais democrática das instituições. Teve renúncia, mea culpa e contrição diante de mulher grávida. Para salvar o pobrezinho rico, afinal era bem apanhado, se não tivesse dado esse quebra pau poderia até pedir “emprestada” a foto dele, pensei: tem mulher que é foda, fica grávida e fecha as pernas, dá merda!  
            Se a morada virtual das delícias pesca até político americano que considero acima de todos os males e macumbas (vai ver penso que EUA é parecido com o Brasil. Ha, ha, ha...). O que não aconteceria com a raia miúda? O pavor bateu geral. Quantas cabeças mal casadas, ou nem tanto, dão uma “voltinha” para estimular? Quem não sabe que funciona? Se tiver que contar esta história da Carochinha de ser desgraçado, cheio de filho que não pode abandonar, para render horrores de bucetinhas ajoelhadas no altar fálico, a gente enfrenta.
            Começou uma troca de email que ultrapassou em adesões todas as correntes do Buda do dinheiro, Anjo da felicidade e de todos os Santos, urgentes ou não. Falei até com chinês, não me pergunta como, mas no desespero a gente entende aramaico. A coisa foi se fundamentando, o pavor crescendo, casamento desmaiando, senhorinhas se enforcando, sei lá mais o que.
            Aí explodiu aquela revolta dos bombeiros no Rio de janeiro, 2000 homens, machos prá caramba, se uniram na força da cara e da coragem e foram às ruas, com ídolo do surf e tudo. Deu prisão para um pacote de caras, logo foram libertados. Se esta causa nobre e restrita tinha perdão, notícia em revista, apoio e aclamação, imagina uma causa mundial, alinhavada pela Internet e muito mais justa, até a FTP daria a maior força.
            A banda larga, curta, discada ou não, e toda a parafernália comunicativa à mão congestionou. Os relógios fugiram de Greenwich, os despertadores criaram a super hora universal, até os Ets devem ter observado o levante e se interessado. Não vem me dizer que extra terrestre não dá umas puladas de muro que nisso não acredito. Macho é macho em qualquer sistema solar. O Deus não é infinito? Então fez tudo igualzinho, só pequenas diferenças verdes e amarelas, mais nada.
            Só não fez notícia retumbante por que tinha repórter, diretor de mídia e até faxineiro de estúdio interessadíssimo no processo e tinha que ser segredo bem guardado senão estragava a eficácia do levante.
            Começaram a azeitar as engrenagens com centenas das mais cultas, intelectuais e até científicas cabeças do planeta.
            Um feriado sensacional onde tudo pára é o Natal, lançou um cuiabano de nó virado. Claro que não, berrou um italiano circense, e os muçulmanos, judeus, budistas? Vamos deixar os irmãos de fora? Corta essa foi a sonora indignação do moscovita.
            No meio da dificuldade de acertos um nordestino arretado, de dedo em riste, este tinha dedo, distribuiu buchada de bode no mundo inteiro. Os moçambicanos adoraram, fazia tempo que não viam uma farra de carne, nem aí se era de bode, vaca ou peru assado. Deu problema, cada um almoçava num horário diferente e a sesta dos gaúchos, mexicanos e afins atrasou os trabalhos. Ficou acertado que não haveria mais acepipes. Só discretos drinques. Discretos, nada de encher a cara que vão dormir no meio dos acertos os do litro e meio. Vieram apupos de todo o lado, de norte a sul, leste e oeste, mas acabaram aceitando em prol da causa.
            Em consenso o dia da reivindicação seria 31 de dezembro, e desta vez bateria meia noite no mesmo instante em todo o planetinha. Nada de exclusividade, a chamada à ordem seria geral, quem se insurgisse teria sua foto peladão, a verdadeira, colocada internacionalmente (o internacional foi pequeno deslize, acontece...) na Internet.
            Bandeiras foram criadas em preto e branco com um gavião explodindo energia no meio. Artistas plásticos doaram suas criações. Foram tantas que se resolveu fazer várias bandeiras e com isso muitas alas foram criadas: dos machões, dos disfarçados de empresários, dos garis, dos cheios da grana. Muitas especializações. Os mafiosos relutaram em ter uma ala, afinal mostrar a cara não era seu estilo.
            Um marqueteiro disse que sem slogan não funcionaria. Problemasso! Até prêmios Nobel entraram no páreo nessa hora. Mais difícil que escolher os “fardões” da Academia Brasileira de Letras. Lapso, esta escolha é fácil, basta ter um QI esquentado por indicações da pesada, gostar de se fantasiar de palhaço e ser chegado em marimbondos de fogo.
            Por unanimidade resolveram que deveria ser muito simples. Não eram machos? Macho bastava. Não houve consenso, muito fraca. Lá dos perdidos ventosos da Patagônia, escondida atrás de outras, veio a voz: Dava para ser Macho, macho, man? Acharam “A sacada”. A música homônima passou batido, nem se lembraram dos machos que a rebolavam. Deixa quieto!
            A vestimenta seria ao gosto do participante, escolher daria muito pano para manga e em alguns pontos do planeta, faltaria pano, todo mundo sabe, inverno aqui, verão lá. Única exigência é que os escoceses abrissem mão do kilt e os mulçumanos dos vestidões, todo mundo de calça comprida, de macho. Lembraram da roupa que serve a rico e a pobre, de direita, de esquerda e do centro: o jeans. Aplauso geral. Todo mundo de jeans e camisa branca. Branco não, gritou Ling Ching Ling, é cor de luto. Ai, cada passo um impasse, ou cada impasse um passo? Só se fosse para trás. Essa torre de babel é de desgovernar os miolos. Cada um com a camisa que quiser, desde que não tenha desenhos, mangas bufantes ou foto de homem no peito, a sua própria pode.
            Afinal, depois de muito é, mas não é, chegou o dia. Já se tinham passado 2 anos, as paqueras estavam frias, as infidelidades discretíssimas e as mulheres desesperadas. As esposas cansadas de tanto dar e as amantes cansadas de não ter para quem dar. A ordem yang-ying do avesso. Haja filosofia para explicar este entre aspas depois! Tremendo trabalho para machos pensantes.
            As badaladas do relógio foram contadas no ritmo certo e a mulherada sem entender coisa nenhuma, o peru nem tinha ido para o forno, as calcinhas brancas estavam secando no varal e a homarada toda na rua soltando foguete? O que é isso?
            Rio de Janeiro, Tremembé das Almas, Calgary, Cartagena, Glasgow e todas as cidades, conhecidas, desconhecidas, as que se ouve falar muito, as nem tanto, as que nunca se viu no mapa. Em todas, lá estavam os homens com estandartes, palavras de ordem, gritaria, coisa de macho, desfilando pelas ruas, estradas, vielas, campos, planícies geladas, altas montanhas, precipícios e qualquer buraco que exista.
            Foi um Deus nos acuda, o levante desta vez foi sensacional, não houve uma só desistência, teve pai que levou bebê de colo, claro que macho. Todo tipo de veículo de carrão até riquichá. Um fato que se tornaria épico.
            No calor da hora, fosse inverno ou verão de torrar, os fantásticos se pelaram e aí, sabe-se lá como, já que nenhum macho, masculino homem estava diante do computador, a notícia se espalhou e foi roupa voando para todo lado.
            Os machos, mas nem tanto, que não tinham participado da estruturação do evento ficaram doidinhos, quiseram passar a mão, dar uma pegadinha. Foi reação total, nada disso, só podia olhar. Alguns até ficaram entristecidos, sabe como é... Na hora de um aperto...
            O sucesso se mostrava estrondoso e os machões já visualizavam a tonelada de emails que receberiam, mulher para escolher, até a Débora Secco chamaria a surfistinha de rol pequeno. Os que se entusiasmavam muito batiam continência, mostravam serviço. Ninguém se incomodou, afinal macho é para isso mesmo. Ficaram orgulhosos dos de sangue quente.
            No meio da euforia generalizada, uma mulher pequena, meio e meio, meio quilo, com cara de todo dia, saiu da assistência com rolo da massa na mão. As outras, de olhos puxados, cabeleira carapinha ou loira escorrida, viram aquilo e...
            Não saiu notícia no jornal, os tvs ficaram caladinhas, nem pé de página teve.
            As mulheres não fizeram levante, não mostraram a bunda, nem reviraram os olhos. Pra que se tinham a única coisa que dobra homem?
            Por décadas a Internet teve a mais fiel comunicação inimaginável.
           

           

           

quarta-feira, 15 de junho de 2011

O RIDÍCULO ESPELHO


O RIDÍCULO ESPELHO


hoje, o espelho é o monitor...
onde nos vemos e procuramos o outro.
-Inácio Carreira-


                Como são ridículas as histórias de espelho, velhas e mofadas. Lembro-me de Caio Fernando Abreu e seus Morangos Mofados, da bruxa da Branca de Neve, O Espelho Não Mente, Através do Espelho e por aí vai espelhando gente que a última coisa que faz é olhar para si mesma, precisa desse reflexo sem nexo. Até eu já fiz contos com espelho. Vira, mexe e lá está ele: O Fatal.
            Clarice pensava isso de forma nem um pouco clara, afinal estava na frente do espelho e não gostava do que espelhava: cara cansada, olhar de ontem, a cabeça numa rotação de 180º. Bom olhar as costas, nela se refugiavam as marcas do acontecido sem as linhas do desassossego, dos vasos quebrados e dos achados e perdidos. Podia pensar que eram apenas costas, nada mais. Coisas simples fazem falta, aliviam os estrovengos, berrantes pensamentos.
            Espelhos não falam, não tem boca azucrinando. Era bom não ter retruques te dizendo quanto és torta e tua escolha é atravessada. Por outro lado os sons caninos eram os únicos que acompanhavam seus dias. De vez em quando precisava do silencio do espelho, pelo menos podia fantasiar que ela era outra, nunca “a” outra. Dessas queria distância, já apanhara o bastante nesta estrada de mão única+.
            Digam o que quiserem, mas viver sozinho pode ser uma barra pesada muitas e muitas vezes. A verdade que é tudo igual: viver numa república ou no “só eu”, vezes ótimas e vezes chatas, outras revezes. O certo mesmo é que moramos com o que houver dentro do espelho. Não pensaria espelho da alma nem morta, muito menos teus olhos são espelho e outras babaquices desse tipo.
            Espelho não passa de um revestimento refletor de baixa transmissividade, sobre o substrato e uma camada opacificante, a qual é disposta sobre o substrato de vidro. Copiado da Internet, não dá para entender nada, espelho é essa coisa simples para a gente se ver e complicadíssimo em palavras, portanto não adianta inventar coisas extra sensoriais, só veremos dois olhos (se não for caolho), um nariz e uma boca, bonitos ou não, ou depende do dia e do humor.
            Pera aí... Fácil de um lado... Complicado por outro... Isso me soa conhecido, tal qual imagem refletida. Melhor não viajar, espelho do outro lado não é espelho. E acabou.
            Foi nesse momento que o computador quieto se manifestou. O MSN soou alto e claro num apelo inescapável. Quem seria? Tomara fosse o milagre. Correu.
            A tarja alaranjada piscando, lembrava luzes do além. Abriu a janela e a mensagem do amigo distante falava de saudades e pedia notícias. Sentou-se e dá-lhe papo. Coisas bobas, invencionices que se pode por no PC sem que ninguém se incomode muito, afinal, fosse quem fosse, não podia ver-lhe a cara amassada, as olheiras invadindo o rosto e nem suspeitar da noite rola enrola que tinha tido.
            Gente era tão bom! Falar mesmo abobrinhas era a coisa mais calorosa que encontrava nos dias espectrais. Depois chamou um e outro, foi se aquecendo, o espelho desmaiando, declarou seu amor ao Facebook, cantou a plenos pulmões com o Youtube, bateu grandes papos num chat. Enviou recados para conhecidos desconhecidos através de várias comunidades.
            Teve as respostas esperadas, outras nem tanto, os desesperados estavam a postos frente à telinha e garantiam a corrente de sons imaginários. Olhou fotografias no Google como se tivessem enviado para ela, ou se ela mesma fotografasse. O mundo encheu-se de vozes e vai-vem, luzes, sons, compartilhamento. Quase se esqueceu de almoçar, lembrou por que a amiga avisou que ficariaoff, a família devia estar à mesa.
            Foi cantarolando ver se haveria algo surpreendente na geladeira. Batatas pré-fritas, ou hambúrguer congelado. No caminho passou pelo espelho, pôs a língua para ele como criança birrenta.
            - Estás vendo, doutor ridículo, não preciso de ti.
            Não se viu de costas, a cabeça estava no lugar, portanto não podia perceber a contração dos músculos que acompanhou seu desaforo.


                                                                                                                              Vana Comissoli